segunda-feira, março 03, 2008

Tradição da lampreia em risco


Apesar de ser associada normalmente a zonas mais a Norte, a lampreia tem também os seus "santuários" na metade Sul do país, nomeadamente no Baixo Alentejo, onde, nesta altura do ano, Mértola se afirma como a "capital" do ciclóstomo. Da Penha d'Águia ao Pulo do Lobo, rio acima, passando pelo Pomarão, Mértola e Canais, as lampreias são apanhadas pelas artes dos resistentes e experientes pescadores do "grande rio do Sul". Uma tradição que, no entanto, parece algo ameaçada pela falta de juventude interessada em aprender a arte.

Muito antes de ser conhecida como a "vila museu", Mértola foi popularizada pelas gentes locais como "a terra das lampreias". E, se a confecção sempre foi muito apreciada, a arte de apanhar nunca lhe ficou atrás e sempre existiram lugares e homens "sagrados" na captura da lampreia do Guadiana. Hoje com redes (tresmalhos), outrora em caniços montados nas enseadas do rio, a apanha continua a ser feita pelos experientes "lobos do rio".

Num dos "santuários" da lampreia do Guadiana, Corte Gafo, concelho de Mértola, nasceu, vive e trabalha José Guerreiro Mestre, um pescador de 55 anos que tem dedicado quase toda a sua vida à captura do ciclóstomo.

"Há quase meio século, que me dedico à pesca da lampreia", disse ao JN aquele que é o mais famoso pescador de Mértola, por todos conhecido como o "Zé dos Canais", nome que herdou do sítio do rio onde sempre fez a faina.

Entre Janeiro e Abril, sozinho no seu barco de cinco metros, Zé dos Canais lança as redes lampreeiras - tresmalhos como se diz no Alentejo - e espera a sorte das marés. "São deitadas à boca da noite e recolhidas na madrugada seguinte", explica. Quando lhe dá o "cheiro" a maior pescaria, passa a noite no barco e vai dando volta às redes de três em três horas. "Não é permitido capturar mais do que seis lampreias por noite", justifica.

E se em terras alentejanas há quem conheça os segredos da apanha, não falta também quem guarde os ensinamentos de décadas na confecção. No Monte dos Corvos, Mértola, Lúcia dos Santos, continua, apesar dos seus 77 anos, a cozinhar a lampreia, como o fazia há 30 ou 40 anos. Apesar de há muito ter rumado a Beja, manteve o contacto com as lampreias.

"Há quem lhe chame 'lampreia à bordalesa', mas aqui dizemos à moda de Mértola", diz a idosa, revelando que o arroz "é feito e servido à parte da lampreia". Pendurada pela cabeça, o "segredo", está no modo como se tira a pele, para que não seja lavada "e não perca o sabor".

A tradição parece, porém, ameaçada. "A malta nova já nem se interessa por comer, quanto mais por apanhar", rematam, em uníssono, pescador e cozinheira, com um toque de lamentação.


Teixeira Correia – Jornal de Notícias - 03-03-2008

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